quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Caminho das Índias

---------------------------------------------------------------------------------------------

_ Anita, olha que graça. Tadinha da Lua, ela tá doidinha por um gato.

_ Hum?

_ Tomara que o cara ligue hoje e traga logo o gato, você acha que ele liga?

_ Deve ligar.

_ Olha só, olha! ela põe o rabo pra cima e treme toda. Tadinha...Como é que ela sabe que se transa assim?

_ Instinto.

_ Será que eu vou poder ficar olhando?

Maia, que falava aceleradamente, parou e encarou Anita, estranhando seu silêncio. Insistiu:

_ Afinal de contas ele pode machucar ela, eu quero estar por perto. Acho que se eu ficar olhando pela janela da cozinha não tem problema...

_ Ah, trata-se de uma voyer, quer dizer, voyesse...

_Como é que é? Voyér, voyesse...Diz de novo, diz! Voiérrr....

Anita não respondeu. Com a ponta da língua para fora e olhos apertados, enrolava um baseado. Em cima da mesa, uma caixa de fósforos, o fumo e a seda. No enrolar cuidadoso na ponta dos dedos, um pouco de cuspe, um gole de cerveja. Levantou os olhos:

_ Maia, não se esparrame pelo chão, você está cheia de areia!

Maia espichava-se no tapete enquanto a gata andava em sua barriga.

_ Ah! Esta praia me deu um sono...

Esfregou os olhos e rolou até os pés de Anita. Esticando-se enquanto sacudia a areia, deu um beijo em sua perna:

_ Hum, você tá salgada!

E, num pulo:

_ Deixa eu sentar no seu colo!

_ Uf!

O corpo magro e comprido ajeitou-se, sentando nas pernas de Anita com os pés para dentro da poltrona. Nas costas vermelhas de sol, via-se a marca do biquine, já laceado. Maia chegou chegou o rosto perto da amiga, afastou seus cabelos e lhe deu um beijo no pescoço.
Anita franziu o rosto. Sem tirar os olhos da mesa, alcançou o copo. Afastava Maia:

_ Deixa eu sair.

E, encarando os olhos úmidos da outra:

_ A cerveja acabou _ disse um pouco lentamente.

Maia permaneceu em pé diante da poltrona vazia. Fez barulho com os pés no tapete e Lua se aproximou correndo, roçando em suas pernas. Esticava as patas e levantava o rabo, que balançava. Maia contorceu seu corpo para trás. Num longo espreguiçar ficou espiando de cabeça para baixo:

_ Porra, Anita, não faz isto! - disse e se levantou, assustada.

Anita, de cócoras, esfregava uma mão no pêlo branco de Lua. Com um dedo excitava-a por debaixo do rabo. A gata tentava fugir, mas Anita a segurava.

_ Que sacanagem, pára, ela vai ficar maluca!

_ Olha só o barulho que ela faz...Que barato! Ela vai comer este gato mal ele apareça na porta!

_ Pára!

Como não fosse atendida, Maia estendeu a perna batendo com o pé de leve nas costas da outra. Ela riu, virando-se:

_Que foi? Não estou fazendo nada...

Sentou-se novamente. Com um palito de fósforo começou a pescar as sementes de maconha que punha na boca, uma a uma.

_ Voce não gosta desta gata, pra você ela é uma coisa mesmo! , gritou Maia. Vem, Lua, vem, chamou, agarrando com força o bolo de pêlos brancos em seu colo.

Anita empurrava cuidadosamento com a ponta da língua nos dentes o conteúdo do fino rolinho branco. Franzia as sobrancelhas. De costas para ela, inclinada sobre a gata, Maia suspirou. Apertando os olhos cheios d`àgua disse, baixinho:

_ Você é o único grande amor da minha vida

_Que foi?

_ Nada.

E, gritando:

_Voce pensa que os gatos pensam como?. Maia sacudia os braços magros com força. Você acha que ela gosta de ficar sendo sacaneada?

_ Fala baixo, querida, fala baixo! e olha, busca um incenso ali _ advertiu, encarando-a. _ Acenda a luz também.

Anita fumava, apertando o baseado entre os dedos:

_ Que cheiro bom tem este incenso! entrou dizendo Maia. Parou de olhos fechados, colocando-o perto do rosto:

_- É uma marca da Índia, Anita?

Anita não respondeu. Olhava na direção de Maia.


_ Você sabia que na Índia só tem coisas lindas, misteriosas e cheirosas?

_ E que eu nunca vou conhecer? Sabia!

_ Não, Anita, pense: isto aqui foi uma flor um dia. Uma flor que passou pela mão de um indianozinho, que depois a amassou, misturou com areia e demorou horas colando-a neste palito. Pense, isto veio de tão longe!

_ Faça o favor de acender antes que quebre, sim? É o meu último.

_ Podia não ser uma flor, poderia ter sido um fruto. Tem cheio de pêssego. Sabe? quando eu era criança, comia pétalas de rosa. Minha irmã mastigava folhas.

Anita riu. Maia riu também, mas logo ficou séria. Acendeu o incenso, apoiando-o na mesa. Aproximou-se de Anita, deitando a cabeça em seu joelho. Voltava para a luz, Anita colava o baseado. Umedecia o papel, deslizando o dedo com força para apertá-lo. Falhava.

_Se pudesse tomava um avião, ia ver o indianozinho. As pessoas lá são quietas e enrolam lindos panos no corpo.

_ Merda!

_Que foi? _ Maia levantou a cabeça. Que foi, Anita?

Ela lambia novamente a seda. Sorriu:

_ Nada.

Maia entrou embaixo da mesa. Buscou Lua, que dormia aos pés de uma cadeira.

_ A Lua também ia, lá ia ser considerada sagrada.

Levantou o gato nas mãos.

_ Hum?

_ Lá, na India, os gatos são vestidos de ouro e ficam na porta dos palácios.

_ Antes de embarcar, lembre-se: a gata é minha.

_ Mas você não liga!

Anita deu de ombros. Levantou-se rumo à geladeira:

_Estou seca por uma cerveja, mas não tem mais.

Maia voltou-se. Olhou para a amiga. Andou até a porta da geladeira, onde esta permanecia parada. Cercou-a com as mãos, fechando seus olhos:

_ Deixa eu te contar um segredo: “eu gosto de você”.

Anita desvencilhou-se, rápida.

_ Já sei! Vou comprar cerveja!, emendou, ajeitando apressadamente o biquine._ Cerveja pra você!

_ Vai mesmo? _ Anita sorria. Pega o dinheiro ali na mesa. Eu vou dar comida pra Lua. Acho que ela não come desde ontem.

Na sala, Maia pegou sua camiseta e vestiu rápido as havaianas da amiga. Anita entrou na despensa:

_ - Maia, vem pegar os cascos. Maia? Ô cabeça, esqueceu!

Ouviu o barulho de chave na tranca. Correu e viu um rabo branco sumindo atrás dela.

__- Maia? Você tá levando a Lua?

A porta bateu:

_ É,. comigo.

_ Maia, cadê minha gata? – gritou Anita.

Ajeitando a gata no ombro, Maia desceu a escada. Na porta do prédio encontrou com o porteiro, que olhou suas pernas nuas, cheias de areia. Maia murmurou um “me desculpe” e alcançou a rua.

Lua fincou as unhas em sua blusa ao ouvir o barulho dos carros.

O canal do Leblon escurecia. Maia abraçou a gata e apertou o passo.

____________________________
AiAi & Os Outros
No estilo de Lygia Fagundes Telles em “Os Objetos”, conto do livro “Antes do Baile Verde” (Ed. José Olumpio – 6ª. edição)

Nenhum comentário: