sábado, 29 de novembro de 2008

A frustação

Dona Sofia nunca alcançou o demandado; sem realizações nos quereres de escolha simples ou profissional.

Dona Sofia sofria bruta em seus olhos de insônia. Mas todos paravam pra ouvi-la, com uma sábia eloquência. Ensinava, em oratória, com orgulho, os diversos possíveis caminhos para um ponto de ônibus.

( Flávio Cavaca)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A materna Sentavam sempre nos bancos detrás: a mãe patusca, roliça e negra com seu filhote magro, porém de olhar altivo, de cerca de 12 anos. Ela ia gesticulando horrores, caras e bocas para o menino. Como podia aprontar tanto na escola, toda semana, todo santo dia? A negra batia com as nádegas no banco na medida em que o ônibus passava por uma lombada ou dobrava mais bruscamente numa rua. O bate-bate das nádegas no assento fazia emetir um som forte, ora abafado ora estridente como o desprender de rolha velha duma garrafa de vinho. Os menos familiarizados com aquele atributo sonoro vinculado a viagem, viravam-se para olhar, perguntando-se "de onde tocam esse bumbo?".Acontece que naquele dia não se precisava tais toantes. A negra postava-se erguida, a falar alto, expondo os braços arfantes num trejeito mais exagerado do que de costume. Gritava coisas do tipo "como pode fazer isso comigo?", enquanto o garoto olhava para ela, encolhendo os olhos apopléticos na cadeira. "Agora deu pra brigar. Vê se pode!? Pra brigar! Se a diretora me chamar de novo, Francisco, eu acabo com tua raça...não vai sobrar um caquinho só de ti". O garoto, que estava habituado com os chiliques da mãe, não deixou de se assustar, quando ela socou furiosa o banco da frente e fez uma careta para o homenzarrão que sentiu a pancada nas costas. "Quê que tá olhando? Nunca viu?"De fato, encontrava-se mais aborrecida que o normal. Por isso, o menino não ousou tentar descontrair. Ficou calado, quieto como um perdigueiro, esperando por sua surra que podia não ser mais em casa e sim, ali mesmo, em público. A negra, no entanto, que já havia deixado a bolsa de lado para suplantar um tapa na face do menino, hesitou. Fitou atônita o rosto dócil e desmilínguido do filho e disse, com ar de resignação: - Escuta Chico, não quero mais saber de quebras no colégio...mas se aquele moleque te chamar de filho-da-puta de novo, enche a cara dele de porrada! Ao que o menino suspirou aliviado, num breve sorriso de carinho. ( Mared Laville)

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O Caminho das Índias

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_ Anita, olha que graça. Tadinha da Lua, ela tá doidinha por um gato.

_ Hum?

_ Tomara que o cara ligue hoje e traga logo o gato, você acha que ele liga?

_ Deve ligar.

_ Olha só, olha! ela põe o rabo pra cima e treme toda. Tadinha...Como é que ela sabe que se transa assim?

_ Instinto.

_ Será que eu vou poder ficar olhando?

Maia, que falava aceleradamente, parou e encarou Anita, estranhando seu silêncio. Insistiu:

_ Afinal de contas ele pode machucar ela, eu quero estar por perto. Acho que se eu ficar olhando pela janela da cozinha não tem problema...

_ Ah, trata-se de uma voyer, quer dizer, voyesse...

_Como é que é? Voyér, voyesse...Diz de novo, diz! Voiérrr....

Anita não respondeu. Com a ponta da língua para fora e olhos apertados, enrolava um baseado. Em cima da mesa, uma caixa de fósforos, o fumo e a seda. No enrolar cuidadoso na ponta dos dedos, um pouco de cuspe, um gole de cerveja. Levantou os olhos:

_ Maia, não se esparrame pelo chão, você está cheia de areia!

Maia espichava-se no tapete enquanto a gata andava em sua barriga.

_ Ah! Esta praia me deu um sono...

Esfregou os olhos e rolou até os pés de Anita. Esticando-se enquanto sacudia a areia, deu um beijo em sua perna:

_ Hum, você tá salgada!

E, num pulo:

_ Deixa eu sentar no seu colo!

_ Uf!

O corpo magro e comprido ajeitou-se, sentando nas pernas de Anita com os pés para dentro da poltrona. Nas costas vermelhas de sol, via-se a marca do biquine, já laceado. Maia chegou chegou o rosto perto da amiga, afastou seus cabelos e lhe deu um beijo no pescoço.
Anita franziu o rosto. Sem tirar os olhos da mesa, alcançou o copo. Afastava Maia:

_ Deixa eu sair.

E, encarando os olhos úmidos da outra:

_ A cerveja acabou _ disse um pouco lentamente.

Maia permaneceu em pé diante da poltrona vazia. Fez barulho com os pés no tapete e Lua se aproximou correndo, roçando em suas pernas. Esticava as patas e levantava o rabo, que balançava. Maia contorceu seu corpo para trás. Num longo espreguiçar ficou espiando de cabeça para baixo:

_ Porra, Anita, não faz isto! - disse e se levantou, assustada.

Anita, de cócoras, esfregava uma mão no pêlo branco de Lua. Com um dedo excitava-a por debaixo do rabo. A gata tentava fugir, mas Anita a segurava.

_ Que sacanagem, pára, ela vai ficar maluca!

_ Olha só o barulho que ela faz...Que barato! Ela vai comer este gato mal ele apareça na porta!

_ Pára!

Como não fosse atendida, Maia estendeu a perna batendo com o pé de leve nas costas da outra. Ela riu, virando-se:

_Que foi? Não estou fazendo nada...

Sentou-se novamente. Com um palito de fósforo começou a pescar as sementes de maconha que punha na boca, uma a uma.

_ Voce não gosta desta gata, pra você ela é uma coisa mesmo! , gritou Maia. Vem, Lua, vem, chamou, agarrando com força o bolo de pêlos brancos em seu colo.

Anita empurrava cuidadosamento com a ponta da língua nos dentes o conteúdo do fino rolinho branco. Franzia as sobrancelhas. De costas para ela, inclinada sobre a gata, Maia suspirou. Apertando os olhos cheios d`àgua disse, baixinho:

_ Você é o único grande amor da minha vida

_Que foi?

_ Nada.

E, gritando:

_Voce pensa que os gatos pensam como?. Maia sacudia os braços magros com força. Você acha que ela gosta de ficar sendo sacaneada?

_ Fala baixo, querida, fala baixo! e olha, busca um incenso ali _ advertiu, encarando-a. _ Acenda a luz também.

Anita fumava, apertando o baseado entre os dedos:

_ Que cheiro bom tem este incenso! entrou dizendo Maia. Parou de olhos fechados, colocando-o perto do rosto:

_- É uma marca da Índia, Anita?

Anita não respondeu. Olhava na direção de Maia.


_ Você sabia que na Índia só tem coisas lindas, misteriosas e cheirosas?

_ E que eu nunca vou conhecer? Sabia!

_ Não, Anita, pense: isto aqui foi uma flor um dia. Uma flor que passou pela mão de um indianozinho, que depois a amassou, misturou com areia e demorou horas colando-a neste palito. Pense, isto veio de tão longe!

_ Faça o favor de acender antes que quebre, sim? É o meu último.

_ Podia não ser uma flor, poderia ter sido um fruto. Tem cheio de pêssego. Sabe? quando eu era criança, comia pétalas de rosa. Minha irmã mastigava folhas.

Anita riu. Maia riu também, mas logo ficou séria. Acendeu o incenso, apoiando-o na mesa. Aproximou-se de Anita, deitando a cabeça em seu joelho. Voltava para a luz, Anita colava o baseado. Umedecia o papel, deslizando o dedo com força para apertá-lo. Falhava.

_Se pudesse tomava um avião, ia ver o indianozinho. As pessoas lá são quietas e enrolam lindos panos no corpo.

_ Merda!

_Que foi? _ Maia levantou a cabeça. Que foi, Anita?

Ela lambia novamente a seda. Sorriu:

_ Nada.

Maia entrou embaixo da mesa. Buscou Lua, que dormia aos pés de uma cadeira.

_ A Lua também ia, lá ia ser considerada sagrada.

Levantou o gato nas mãos.

_ Hum?

_ Lá, na India, os gatos são vestidos de ouro e ficam na porta dos palácios.

_ Antes de embarcar, lembre-se: a gata é minha.

_ Mas você não liga!

Anita deu de ombros. Levantou-se rumo à geladeira:

_Estou seca por uma cerveja, mas não tem mais.

Maia voltou-se. Olhou para a amiga. Andou até a porta da geladeira, onde esta permanecia parada. Cercou-a com as mãos, fechando seus olhos:

_ Deixa eu te contar um segredo: “eu gosto de você”.

Anita desvencilhou-se, rápida.

_ Já sei! Vou comprar cerveja!, emendou, ajeitando apressadamente o biquine._ Cerveja pra você!

_ Vai mesmo? _ Anita sorria. Pega o dinheiro ali na mesa. Eu vou dar comida pra Lua. Acho que ela não come desde ontem.

Na sala, Maia pegou sua camiseta e vestiu rápido as havaianas da amiga. Anita entrou na despensa:

_ - Maia, vem pegar os cascos. Maia? Ô cabeça, esqueceu!

Ouviu o barulho de chave na tranca. Correu e viu um rabo branco sumindo atrás dela.

__- Maia? Você tá levando a Lua?

A porta bateu:

_ É,. comigo.

_ Maia, cadê minha gata? – gritou Anita.

Ajeitando a gata no ombro, Maia desceu a escada. Na porta do prédio encontrou com o porteiro, que olhou suas pernas nuas, cheias de areia. Maia murmurou um “me desculpe” e alcançou a rua.

Lua fincou as unhas em sua blusa ao ouvir o barulho dos carros.

O canal do Leblon escurecia. Maia abraçou a gata e apertou o passo.

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AiAi & Os Outros
No estilo de Lygia Fagundes Telles em “Os Objetos”, conto do livro “Antes do Baile Verde” (Ed. José Olumpio – 6ª. edição)
....e e ntão ela o viu, 15 anos depois do último encontro, em pé numa livraria, folheando algum livro com interesse e foi como se nunca tivessem se separado, ele ainda tímido, abrindo um buraco por onde se enfiar, da última vez tinha sido na areia da praia e agora ali, mergulhando dentro de um livro e nada a impediu nem ela pensou, foi direto dizendo “você aqui, achei que tinha morrido” e ele disse “morrer e morar em Campos dá no mesmo” e então ela riu como ele gostava e ela o achou igualzinho mas a cabeça dele continuava boa e ruim; boa para lhe convidar para um café e ruim porque continuava negativo pois começou dizendo “estou muito velho”, justo ele que estava moreno e forte como um índio e ela perguntou porque só agora ele voltava para a cidade que tanto detestava, e ele disse que tinha acabado de saldar as dívidas,terminado um casamento e fechado a casa, mas não tinha idéia do que fazer agora e aonde ir, então ela pensou: ele foi lá arrumar a toca,ele mudou, mas, de repente, não sabe se foi porque ele apertava os olhos diante dos ruídos em volta, como um raio o mesmo sentimento da última vez há quase vinte anos lhe abateu, ele não quer ajuda, ele tem esta vida de roedor, se esconde do sol, rasga tudo o que vê ali naquela toca e quando o abrigo cai em sua cabeça ela pensa em sair, mas apenas quando o sapato já encheu tanto de areia que não dá para andar quase e quando ela pensou nisto, de repente o café estava se estendendo e o perigo morava ali, na porta da nova caverna que ele se animava a re-começar com ela, definitivamente ele era um bicho, um índio deprimido, um negro com banzo que nunca quis se civilizar e por mais idiota que ela achasse ter um computador, passar creme, fazer compras ou falar com os outros, as pessoas iam sobrevivendo assim então ela os imitava, mas ao mesmo tempo achou tão lindo ele estar igual que fechou os olhos, respirou fundo, disse “até daqui a outros 15 anos” e, cheia de instinto de preservação, lhe deu um beijo e partiu.
AiAi & Os Outros
Exercício: texto com um ponto só

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

14.100

Meu nome? Prefiro não me identificar. Mas tenho certeza que não é só meu nome que você quer saber. Isso, tenha coragem para fazer a pergunta certa! Minha história? (Ah, agora sim...) Bem, minha história começou no apartamento da Carol: Rua do Canal, 14.100, apto.1008.
Aniversário da Silvia, já era tarde. A maioria dos convidados já tinha ido embora. Vamos cantar parabéns? Ótimo, já estava na minha hora de ir. Aquelas garotas todas iam dormir lá, não tinha carona para ir embora. Andar... Assisti em um programa de tv que devemos dar 10.000 passos por dia, acho que baterei a cota de hoje.
Decidi puxar por mim mesmo o coro. Cantamos parabéns e em seguida me despedi de todos os presentes, de alguns mais de uma vez. Estava com pressa, meus 10.000 passos me esperavam. A prima da Carol foi levar-me até o elevador. Mais uma das boas madrugadas que costumávamos passar naquele apartamento estava chegando ao fim. Adeus!
Entro no elevador e aperto o térreo. O espelho; que cara de maluco... Eis que observo, na parede lateral do elevador, um comunicado impressionante:
“Viemos por meio deste, comunicar que por duas vezes foi constatado que algum morador do bloco 2 jogou baldes d’água da varanda de seu apartamento diretamente no play do condomínio. Avisamos que atitudes como essa vão totalmente contra o estatuto do condomínio e que o culpado pode ser punido com a expulsão de acordo com as novas leis...” Blá, blá, blá...
Nossa que sensacional!

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Um casal feliz. Casados há pouco mais de um ano. O filho nasceu há pouco tempo. Pouquíssimos meses mesmo, tanto que a mãe dele ainda tira leite do peito e estoca em mamadeiras na geladeira. Sabe como é que é, né? Mulher trabalhadora, o dia inteiro na rua... Uma babá, sim uma babá! Uma babá resolveria tudo.
Não precisaram fazer mais de uma entrevista: Edileuza, indicada de uma amiga da avó da criança. Morava no subúrbio, vinha de metro, apertada na linha 2, e depois ainda tinha que pegar um ônibus até chegar na Rua do Canal. Ah, mas valia a pena: seu irmão tinha síndrome de down; sua mãe não podia trabalhar para tomar conta do irmão; o salário do pai mal botava a comida na mesa. Era imprescindível trabalhar, e aquele emprego havia caído dos céus. Cuidar de criança ela sabia muito bem, um bebê não daria muito trabalho...
Tarde nublada, a novela havia acabado de acabar. Os pais só voltariam lá pelas 7h da noite. Mas ela lembrava muito bem das instruções: mamadeira na gaveta da geladeira. Alimentar a criança e, eventualmente, trocar uma fralda era tudo o que ela tinha de fazer.
Filme chato, nada para ver na tv. Tv a cabo! Não sei quem quer ver esses programas chatos em inglês. Essa gente joga dinheiro no lixo.
- Queridinho, eu vou dar o papa lá em baixo tudo bem? Vamos pro carrinho...
Sua real esperança era encontrar alguém para fofocar no play. Um prédio desse tamanho, 3 blocos, quantas babas não haveriam por ali? E quantas histórias elas não poderiam lhe contar, e vice-versa. Tudo bem, se ninguém soubesse fofoca alguma, conversar sobre novela já lhe bastaria.
Desceram o elevador, ainda sem recado algum, e chagaram no play. Após alguns instantes ela até que conseguiu se libertar do labirinto de portas de vidro dá área social do hall do prédio e finalmente achou a saída. Mas... Que bairro mais mixuruca! Da janela ela podia jurar ter visto uma 2 mulheres de uniforme. Porém, agora, ninguém! Nem babás, nem empregadas, nem morador algum.
Não havia muito a fazer, ela decidiu sentar em um dos bancos e ficar por lá mesmo. Balançava o carrinho de bebê enquanto preparava a mamadeira. A criança balançava os braçinhos e seus olhos piscavam com a inocência típica dos recém-chegados. Tão gracioso... tão frágil...
Ela podia notar tudo isso enquanto balançava o carrinho. Notava e lembrava-se do seu irmão, e dá sua mãe e de seu pai. Sentia-se feliz.
Mas ela não esperava o que estava por vir.
Exatamente as 4:45, justo na hora em que ela abrira a proteção do carrinho de bebê para dar-lhe a mamadeira, a tragédia aconteceu. Algum morador ensandecido jogou um balde de água gelada bem em cima dos dois. Uma pessoa desastrada? Dificilmente... A arquitetura da varanda não propiciava este tipo de acidentes. Um ato mal intencionado? Provavelmente! Pelo visto ninguém sabe nada sobre o autor desta brincadeira de mau gosto até hoje... Mas quem sofreu com as conseqüências foi ela, Edileuza.
O bebê deve ter se machucado com o impacto da água. O pior foi que ele gripou-se terrivelmente, chegou, inclusive, a esboçar um princípio de pneumonia. Os patrões não quiseram nem saber, alguém que consegue adoecer seu filho logo no primeiro dia do emprego não era digna da responsabilidade que lhe havia sido designada. Demitida! E agora? Seu irmão? Sua família? Tristeza...

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Casamento no play? Onde já se viu uma coisa dessas? Minha tia, uma figura, sempre dizia que festa no play nunca dava certo. Realmente, que coisa mais deprimente! E casamento então? Tá bom que era uma festa simbólica: os dois não eram nem um pouco religiosos para casar na igreja, e, além do mais, o processo de divorcio entre a noiva e o primeiro marido ainda nem havia terminado por completo. Isso deixava a mãe do noivo irritadíssima. Até porque aquele apartamento era dela. Como é que seu filho pôde escolher aquela vagabunda como esposa?
Encomendaram um requintado bolo, com um casal de noivos estilizado fincado no glacê. A decoração estava razoável, teria sido melhor não ter feito decoração alguma, mas... festa no play tem mesmo é que ser brega. Chamaram até um sujeito eloqüente, conhecido da família do noivo, pra fazer papel de padre e dizer belas palavras enquanto o casal trocava beijos e alianças.
20:00, alguns convidados mais pontuais começaram a chegar.
21:00, quem tinha de vir mesmo já estava ali.
21:45, todos já haviam chegado, hora de começar a cerimônia.
Na área externa do play havia sido montado um pequeno palanque para que os noivos e as respectivas famílias se destacassem dos demais convidados. Em pouco tempo, muito elegantemente vestidos, todos já estavam em seus devidos lugares. O noivo já esperava no palanque ao lado de sua mãe. A noiva entrou de braços dados com o pai. Enquanto caminhava para o palanque, ela pôde notar como a sogra a olhava. “Essa vaca me odeia, eu tenho certeza que essa vaca me odeia! Só por que eu roubei o filhinho dela.” A cada passo ela podia notar com mais clareza o seu olhar fulminante. Tentou se concentrar, manter o corpo fechado.
Parou com o pai próximo ao seu noivo. Este, nem se dava conta do que estava acontecendo. E isso é que era o pior. Ah, mas se existe alguma justiça no mundo aquela velha ainda teria de pagar por tudo aquilo. A noiva só não imaginou que a providência divina agiria com tanta presteza, porque, exatamente naquele momento, em plena reunião matrimonial, o vândalo do balde d’água atacou novamente.
Dessa vez, em um ataque noturno, ele despejou um balde inteiro de água torrencialmente gelada em cima do noivo e sua mãe. “Obrigado Senhor”, louvou a noiva.
Ah, a tarde no salão de beleza... A escova, a maquiagem, o vestido... E a cara de bobo do noivo? Demorou uma meia hora para entender o que havia acontecido. Os convidados, assustadíssimos, soltaram uma exclamação de espanto em uníssono: ohhhh! Era o fim da noite...

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“...leis de condomínio. Informamos também que será realizada na próxima quarta-feira, dia 23, uma reunião geral sobre o assunto, onde decidiremos sobre a instalação de câmeras de segurança para monitorar os movimentos nas varandas do bloco 2. Pedimos desde já que esta... “

Minha história? Minha história mesmo começa bem antes do parabéns, semanas antes da festa da Silvia.
Segunda à tarde, inicio das férias. Aluguei uns filmes na locadora, vai fazer alguma coisa hoje à tarde? Não, não ia fazer nada. Aceitei o convite. Carol morava sozinha. Ótimo ter uma amiga assim: ótimo para festas, para filmes, para passar um tempo longe de casa...
Lembro-me bem daquela tarde. Ela colocou o filme no quarto. Trailer, mais trailer. Por que não alugou em dvd? Que saco, vou pegar alguma coisa pra beber na cozinha.
Saí caminhando pelo apartamento, atravessei a sala. Uau! Que entardecer dá para se ver aqui do décimo andar! Não resisiti e fui contemplar a vista da varanda. Dá para se ver a praia ao longe... Ao lado, somente prédios... Mas... O que era aquilo lá em baixo? Uma mulher ninando um bebê em um carrinho...
Devo admitir que não resisti, foi mais forte do que eu! É como se eu fosse tomado de súbito por uma força maior, incontrolável! Sim, eu sou o maníaco do balde d’água!
Corri para a cozinha, para a pequenina área de serviço... um balde! Havia um galão de água na geladeira. Despejei-o no balde e completei o resto com água da pia. Dane-se, depois eu encho de novo no filtro e boto para gelar, o que importa é que gelado é mais gostoso...
Ao despejar aquele balde d’água fria na mulher com o carrinho senti como se minha alma despencasse do décimo andar. Era como num bungue-jump, delicioso! Ah, quanto prazer...
Entrei antes que olhassem para cima. Enchi novamente o galão, o coloquei na geladeira e voltei realizado para o quarto. Confesso que não consegui prestar atenção no filme.
Teve também a vez do encontro de turma. Foi basicamente a mesma coisa, só que mais ousado, o que aumentou em muito o meu prazer. Mas também, um casamento! Poderia haver ocasião mais fantástica do que um casamento no play? Não teria aquela sorte duas vezes. Tive de esperar todos ficarem um pouco bêbados e distraídos. Consegui atraí-los para dentro, e em seguida foi fácil. O refrigerante derramado propositadamente no chão da varanda seria o álibi caso alguém me visse passando com o balde cheio pela sala. Mas não foi preciso, ninguém sequer notou.
Ai, que delicia! Aquela vez havia sido melhor que a primeira. Parecia que eu havia acabado de saltar de pára-quedas. Pena que é tudo tão rápido. Eu gostaria de não precisar me esconder, de olhar para os andares de cima fingindo procurar indignado o autor da travessura. Mas era arriscado... Arriscado demais.

Mas ali, naquela hora, descer o elevador e ler aquele comunicado. Era como um flash back... Eu podia sentir tudo de novo! Toda a emoção, o prazer. E dessa vez, o sentimento de estar descendo fisicamente multiplicava tudo por mil...
Infelizmente, como fora das outras vezes, aquele momento não duraria para sempre, logo chegarei ao térreo. Ah, mas dessa vez havia como prolongá-lo, reproduzi-lo, nem que artificialmente a cada vez que eu relesse em casa, no quarto vazio, a descrição de meus feitos sob a ótica daquela síndica desamparada.
Arranquei o comunicado da parede e sai do elevador. Atravessei com facilidade o labirinto de portas de vidro do hall do prédio e em pouco estava saindo pela portaria. Enquanto o vento batia no meu rosto e levantava meus cabelos, eu me sentia livre, vivo. O comunicado já estava no bolso, não correria o risco de deixá-lo escapar na ventania. A madrugada já se ia, e os últimos raios de luar estavam a brilhar. Haveria muito para fazer quando chegasse em casa.
Essa é minha história. Meu nome? Prefiro não me identificar. Pode me chamar de maníaco do balde d’água ou coisa parecida, pois é assim que quero ser reconhecido, é assim que me reconheço. E enquanto andava pela Rua do Canal, ia deixando o 14.100 para trás contando cada um dos meus passos: 1, 2, 3, 4, 5, 6...
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(Lauro Cavalcantti)

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

मरेमोतो
एस्कोम्ब्रोस