quinta-feira, 6 de novembro de 2008

14.100

Meu nome? Prefiro não me identificar. Mas tenho certeza que não é só meu nome que você quer saber. Isso, tenha coragem para fazer a pergunta certa! Minha história? (Ah, agora sim...) Bem, minha história começou no apartamento da Carol: Rua do Canal, 14.100, apto.1008.
Aniversário da Silvia, já era tarde. A maioria dos convidados já tinha ido embora. Vamos cantar parabéns? Ótimo, já estava na minha hora de ir. Aquelas garotas todas iam dormir lá, não tinha carona para ir embora. Andar... Assisti em um programa de tv que devemos dar 10.000 passos por dia, acho que baterei a cota de hoje.
Decidi puxar por mim mesmo o coro. Cantamos parabéns e em seguida me despedi de todos os presentes, de alguns mais de uma vez. Estava com pressa, meus 10.000 passos me esperavam. A prima da Carol foi levar-me até o elevador. Mais uma das boas madrugadas que costumávamos passar naquele apartamento estava chegando ao fim. Adeus!
Entro no elevador e aperto o térreo. O espelho; que cara de maluco... Eis que observo, na parede lateral do elevador, um comunicado impressionante:
“Viemos por meio deste, comunicar que por duas vezes foi constatado que algum morador do bloco 2 jogou baldes d’água da varanda de seu apartamento diretamente no play do condomínio. Avisamos que atitudes como essa vão totalmente contra o estatuto do condomínio e que o culpado pode ser punido com a expulsão de acordo com as novas leis...” Blá, blá, blá...
Nossa que sensacional!

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Um casal feliz. Casados há pouco mais de um ano. O filho nasceu há pouco tempo. Pouquíssimos meses mesmo, tanto que a mãe dele ainda tira leite do peito e estoca em mamadeiras na geladeira. Sabe como é que é, né? Mulher trabalhadora, o dia inteiro na rua... Uma babá, sim uma babá! Uma babá resolveria tudo.
Não precisaram fazer mais de uma entrevista: Edileuza, indicada de uma amiga da avó da criança. Morava no subúrbio, vinha de metro, apertada na linha 2, e depois ainda tinha que pegar um ônibus até chegar na Rua do Canal. Ah, mas valia a pena: seu irmão tinha síndrome de down; sua mãe não podia trabalhar para tomar conta do irmão; o salário do pai mal botava a comida na mesa. Era imprescindível trabalhar, e aquele emprego havia caído dos céus. Cuidar de criança ela sabia muito bem, um bebê não daria muito trabalho...
Tarde nublada, a novela havia acabado de acabar. Os pais só voltariam lá pelas 7h da noite. Mas ela lembrava muito bem das instruções: mamadeira na gaveta da geladeira. Alimentar a criança e, eventualmente, trocar uma fralda era tudo o que ela tinha de fazer.
Filme chato, nada para ver na tv. Tv a cabo! Não sei quem quer ver esses programas chatos em inglês. Essa gente joga dinheiro no lixo.
- Queridinho, eu vou dar o papa lá em baixo tudo bem? Vamos pro carrinho...
Sua real esperança era encontrar alguém para fofocar no play. Um prédio desse tamanho, 3 blocos, quantas babas não haveriam por ali? E quantas histórias elas não poderiam lhe contar, e vice-versa. Tudo bem, se ninguém soubesse fofoca alguma, conversar sobre novela já lhe bastaria.
Desceram o elevador, ainda sem recado algum, e chagaram no play. Após alguns instantes ela até que conseguiu se libertar do labirinto de portas de vidro dá área social do hall do prédio e finalmente achou a saída. Mas... Que bairro mais mixuruca! Da janela ela podia jurar ter visto uma 2 mulheres de uniforme. Porém, agora, ninguém! Nem babás, nem empregadas, nem morador algum.
Não havia muito a fazer, ela decidiu sentar em um dos bancos e ficar por lá mesmo. Balançava o carrinho de bebê enquanto preparava a mamadeira. A criança balançava os braçinhos e seus olhos piscavam com a inocência típica dos recém-chegados. Tão gracioso... tão frágil...
Ela podia notar tudo isso enquanto balançava o carrinho. Notava e lembrava-se do seu irmão, e dá sua mãe e de seu pai. Sentia-se feliz.
Mas ela não esperava o que estava por vir.
Exatamente as 4:45, justo na hora em que ela abrira a proteção do carrinho de bebê para dar-lhe a mamadeira, a tragédia aconteceu. Algum morador ensandecido jogou um balde de água gelada bem em cima dos dois. Uma pessoa desastrada? Dificilmente... A arquitetura da varanda não propiciava este tipo de acidentes. Um ato mal intencionado? Provavelmente! Pelo visto ninguém sabe nada sobre o autor desta brincadeira de mau gosto até hoje... Mas quem sofreu com as conseqüências foi ela, Edileuza.
O bebê deve ter se machucado com o impacto da água. O pior foi que ele gripou-se terrivelmente, chegou, inclusive, a esboçar um princípio de pneumonia. Os patrões não quiseram nem saber, alguém que consegue adoecer seu filho logo no primeiro dia do emprego não era digna da responsabilidade que lhe havia sido designada. Demitida! E agora? Seu irmão? Sua família? Tristeza...

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Casamento no play? Onde já se viu uma coisa dessas? Minha tia, uma figura, sempre dizia que festa no play nunca dava certo. Realmente, que coisa mais deprimente! E casamento então? Tá bom que era uma festa simbólica: os dois não eram nem um pouco religiosos para casar na igreja, e, além do mais, o processo de divorcio entre a noiva e o primeiro marido ainda nem havia terminado por completo. Isso deixava a mãe do noivo irritadíssima. Até porque aquele apartamento era dela. Como é que seu filho pôde escolher aquela vagabunda como esposa?
Encomendaram um requintado bolo, com um casal de noivos estilizado fincado no glacê. A decoração estava razoável, teria sido melhor não ter feito decoração alguma, mas... festa no play tem mesmo é que ser brega. Chamaram até um sujeito eloqüente, conhecido da família do noivo, pra fazer papel de padre e dizer belas palavras enquanto o casal trocava beijos e alianças.
20:00, alguns convidados mais pontuais começaram a chegar.
21:00, quem tinha de vir mesmo já estava ali.
21:45, todos já haviam chegado, hora de começar a cerimônia.
Na área externa do play havia sido montado um pequeno palanque para que os noivos e as respectivas famílias se destacassem dos demais convidados. Em pouco tempo, muito elegantemente vestidos, todos já estavam em seus devidos lugares. O noivo já esperava no palanque ao lado de sua mãe. A noiva entrou de braços dados com o pai. Enquanto caminhava para o palanque, ela pôde notar como a sogra a olhava. “Essa vaca me odeia, eu tenho certeza que essa vaca me odeia! Só por que eu roubei o filhinho dela.” A cada passo ela podia notar com mais clareza o seu olhar fulminante. Tentou se concentrar, manter o corpo fechado.
Parou com o pai próximo ao seu noivo. Este, nem se dava conta do que estava acontecendo. E isso é que era o pior. Ah, mas se existe alguma justiça no mundo aquela velha ainda teria de pagar por tudo aquilo. A noiva só não imaginou que a providência divina agiria com tanta presteza, porque, exatamente naquele momento, em plena reunião matrimonial, o vândalo do balde d’água atacou novamente.
Dessa vez, em um ataque noturno, ele despejou um balde inteiro de água torrencialmente gelada em cima do noivo e sua mãe. “Obrigado Senhor”, louvou a noiva.
Ah, a tarde no salão de beleza... A escova, a maquiagem, o vestido... E a cara de bobo do noivo? Demorou uma meia hora para entender o que havia acontecido. Os convidados, assustadíssimos, soltaram uma exclamação de espanto em uníssono: ohhhh! Era o fim da noite...

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“...leis de condomínio. Informamos também que será realizada na próxima quarta-feira, dia 23, uma reunião geral sobre o assunto, onde decidiremos sobre a instalação de câmeras de segurança para monitorar os movimentos nas varandas do bloco 2. Pedimos desde já que esta... “

Minha história? Minha história mesmo começa bem antes do parabéns, semanas antes da festa da Silvia.
Segunda à tarde, inicio das férias. Aluguei uns filmes na locadora, vai fazer alguma coisa hoje à tarde? Não, não ia fazer nada. Aceitei o convite. Carol morava sozinha. Ótimo ter uma amiga assim: ótimo para festas, para filmes, para passar um tempo longe de casa...
Lembro-me bem daquela tarde. Ela colocou o filme no quarto. Trailer, mais trailer. Por que não alugou em dvd? Que saco, vou pegar alguma coisa pra beber na cozinha.
Saí caminhando pelo apartamento, atravessei a sala. Uau! Que entardecer dá para se ver aqui do décimo andar! Não resisiti e fui contemplar a vista da varanda. Dá para se ver a praia ao longe... Ao lado, somente prédios... Mas... O que era aquilo lá em baixo? Uma mulher ninando um bebê em um carrinho...
Devo admitir que não resisti, foi mais forte do que eu! É como se eu fosse tomado de súbito por uma força maior, incontrolável! Sim, eu sou o maníaco do balde d’água!
Corri para a cozinha, para a pequenina área de serviço... um balde! Havia um galão de água na geladeira. Despejei-o no balde e completei o resto com água da pia. Dane-se, depois eu encho de novo no filtro e boto para gelar, o que importa é que gelado é mais gostoso...
Ao despejar aquele balde d’água fria na mulher com o carrinho senti como se minha alma despencasse do décimo andar. Era como num bungue-jump, delicioso! Ah, quanto prazer...
Entrei antes que olhassem para cima. Enchi novamente o galão, o coloquei na geladeira e voltei realizado para o quarto. Confesso que não consegui prestar atenção no filme.
Teve também a vez do encontro de turma. Foi basicamente a mesma coisa, só que mais ousado, o que aumentou em muito o meu prazer. Mas também, um casamento! Poderia haver ocasião mais fantástica do que um casamento no play? Não teria aquela sorte duas vezes. Tive de esperar todos ficarem um pouco bêbados e distraídos. Consegui atraí-los para dentro, e em seguida foi fácil. O refrigerante derramado propositadamente no chão da varanda seria o álibi caso alguém me visse passando com o balde cheio pela sala. Mas não foi preciso, ninguém sequer notou.
Ai, que delicia! Aquela vez havia sido melhor que a primeira. Parecia que eu havia acabado de saltar de pára-quedas. Pena que é tudo tão rápido. Eu gostaria de não precisar me esconder, de olhar para os andares de cima fingindo procurar indignado o autor da travessura. Mas era arriscado... Arriscado demais.

Mas ali, naquela hora, descer o elevador e ler aquele comunicado. Era como um flash back... Eu podia sentir tudo de novo! Toda a emoção, o prazer. E dessa vez, o sentimento de estar descendo fisicamente multiplicava tudo por mil...
Infelizmente, como fora das outras vezes, aquele momento não duraria para sempre, logo chegarei ao térreo. Ah, mas dessa vez havia como prolongá-lo, reproduzi-lo, nem que artificialmente a cada vez que eu relesse em casa, no quarto vazio, a descrição de meus feitos sob a ótica daquela síndica desamparada.
Arranquei o comunicado da parede e sai do elevador. Atravessei com facilidade o labirinto de portas de vidro do hall do prédio e em pouco estava saindo pela portaria. Enquanto o vento batia no meu rosto e levantava meus cabelos, eu me sentia livre, vivo. O comunicado já estava no bolso, não correria o risco de deixá-lo escapar na ventania. A madrugada já se ia, e os últimos raios de luar estavam a brilhar. Haveria muito para fazer quando chegasse em casa.
Essa é minha história. Meu nome? Prefiro não me identificar. Pode me chamar de maníaco do balde d’água ou coisa parecida, pois é assim que quero ser reconhecido, é assim que me reconheço. E enquanto andava pela Rua do Canal, ia deixando o 14.100 para trás contando cada um dos meus passos: 1, 2, 3, 4, 5, 6...
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(Lauro Cavalcantti)

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