quarta-feira, 1 de abril de 2009

Calçadas

(João andava sobre o preto-branco entrecurvado de Copacabana. João andava muito bacana sobre os paralelepípedos da orla larga.)
Foi ali, no sumoutrora, no velho antro daquela quioscada, que João encontrou Maria toda esguia e magra e santa. A moça Maria pegou com ousadia a mão de João tão feia oportuna. João, o negro, Maria, a alva, crianças calvas olhando o mar quando chega na praia. João Maria João Maria, o preto no branco o branco no preto cariocado, crescidos do enfado de lado a lado caminhar na calçada.
João casou! Maria estudou! Com o “bota abaixo”- João favelado. E a dor-revelia da França trop fria, a rica manceba tirou doutorado.
(João andava sobre o preto-branco entrecurvado de Copacabana. João andava muito bacana sobre os paralelepípedos da orla larga.)
Joãos s’ erigia do amor de lembranças que guarda as calçadas de vastas passadas. João calçada João calçada João calçada... calçada calçada.



(Flávio Cavaca)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Disfunção do defunto alheio

A dor hoje aclamada pelos meus rins está tão forte quanto uma melodia de Mozart. Já pensei em comprar umas rosas para cultivar a vida, para me valer a mordida de todos os amores.
Falam da depressão como se fossem rancores, uma doença partida em seus milhões de maltratos. Hoje, não falo da depressão tão somente, não falo do amor, da coragem perdida nas escadas de um condomínio lacônico pois sujo em cristalino azulejo.
Venho falar-lhes da vida em pedacos incultos, como o não-querer de mim. Venho falar-lhes do ego, da falta de afago na minúcia dos dias. A solidão, diz o provérbio judáico, só serve para Deus. Pois, valha Deus Diabo, minha solidão de hoje. Minha perda de sempre.
Estou mais sozinho do que um estrangeiro na Arabia. Estou mais deprê do que a morte em si mesmo- senhores, senhoras!
Sou um diário inacabado. Sou a aurora num firmamento enamorado. Não sou ninguém.
Quero ser. Quero ser, apenas.


Flávio Cavaca

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Carleto Gaspar Simões

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Em outubro de 1826 as Forças Patrióticas de Carleto firmaram o acordo de paz que definia os limites definitivos da República Carletiana. Ao norte a fronteira se estendia ao longo da margem sul do Paraguaçu, a oeste ultrapassava as serras e planaltos até o São Francisco e ao sul seguia o curso sinuoso do Rio Doce.

- O historiador pernambucano José Inácio de Abreu e Lima no capítulo XII de seu livro, Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais notáveis da história do Brasil de 1844, aponta o ataque a salvador como o estopim da crise no Exército Patriótico; tivesse respeitado o acordo e permanecido na defensiva por mais tempo, Marechal Carleto poderia ter, definitivamente, expulsado os portugueses do Brasil.

- A ruptura do acordo de paz fez com que os franceses retirassem seu apoio aos Patriotas e fortaleceu a aliança entre lusos e ingleses.

- Segundo Abreu e Lima, nas vésperas do natal de 1826 o Grande Exército Imperial Português, comandando por um obscuro Coronel Franklin e auxiliado por artilheiros ingleses, irrompeu nas margens do Paraguaçu.

O corpo principal das forças de Carleto se encontrava envolvido no ataque a Salvador e as tropas do Tenente Campos Bastos falharam em impedir a travessia inimiga sobre o rio.

O Marechal, em franca desvantagem, apressou-se em recuar tropas de Salvador e Itaparica até a cidade de Valença, que já era atacada na noite do ano novo pelos canhões e morteiros do exército Imperial.

Diante da precariedade de suas posições, os Patrióticos demoliram todas as pontes da cidade e recuaram para a inacessível Ilha de Boipeba.

Abandonados pelas tropas, os habitantes de Valença foram trucidados pelas forças portuguesas: mulheres foram estupradas até a exaustão, crianças foram surradas e executadas, e os edifícios foram todos arruinados, ficaram de pé apenas a velha igreja amarelada de Nossa Senhora do Amparo, o cruzeiro na praça das balsas e os enxames nos restos do reboco atravessado.

- Carletistas ainda sustentaram a luta através de emboscadas nos mangues que cercavam a ilha, mas no começo de abril os portugueses já dominavam o canal de Tinharé e o todo o complexo labiríntico de rios e meandros que protegiam as Forças Patrióticas.

A ilha foi cercada e não restou alternativa ao Marechal: Na manhã do domingo de páscoa, Carleto se entregava com seus oficiais às forças portuguesas e foi enviado num veleiro militar inglês para o forte do Morro de São Paulo e posteriormente para o Rio de Janeiro.


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REPÚBLICA CARLETIANA (1823-1835)

As referências históricas ao período Carletista na Bahia são praticamente inexistentes. Quase todas as fontes que mencionavam esses eventos ocorridos na Bahia entre 1823 e 1835 foram sistematicamente destruídas ao longo do período regencial e do Reinado de Dom Pedro II.
Tenho conhecimento de apenas dois autores que fazem referência direta ao nome de Carleto Gaspar Simões
:

1.

A Conquista de Salvador pelas Forças Patrióticas de Carleto em 1823, a serviço do Imperador Dom Pedro I, é mencionada pelo historiador pernambucano José Inácio de Abreu e Lima no capítulo oito de, Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais notáveis da história do Brasil:


“... General Carleto Gaspar Simões admitiu que teria de sitiar a cidade de Salvador. Ele reuniu canhões e batelões carregados de morteiros e, por seis semanas, a cidade foi bombardeada. O ataque foi tão intenso que a população fez recolher-se em cavernas sob as igrejas. Cercada e incomunicável, Salvador ficou sem alimentos e munição. Nos primeiros meses de 1823 as doenças matavam cada vez mais pessoas. Diante dessa situação, o Comandante Português permitiu a saída dos moradores e cerca de 10 mil pessoas deixaram a capital da província.
Os defensores imperiais mantiveram seus postos, mas Madeira de Mello via sua provisão de víveres reduzir-se cada vez mais, e seus homens começavam lentamente a esfaimar-se.
Em 3 de julho, sabendo que não tinha esperanças de socorro, o comando português pediu termos de rendição ao General...”




2.

O Folclorista mineiro João da Silva Campos, em sua Coleção de contos populares de 1876, curiosamente menciona uma marcante atuação de Carleto, ainda Tenente, numa refrega perto da cidade de Trancoso, quando protagonizara um curiosa intervenção num assalto aos acampamentos da resistência portuguesa:

"... e o homem sozinho e furioso de nome Carleto Gaspar Simões caiu com estrondo sobre os homens e a soldadesca d'el-rei deu para trás com precipitação, ante os repetidos golpes do estranho soldado que, ao demais, parecia blindado contra as balas (...) Mais tarde explicaram os derrotados a causa de haverem cedido terreno àqueles...”

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terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Contos curtos

Rodolfo casara-se com Maria ainda jovem, mas apaixonado. Mudaram-se para um enorme apartamento na Avenida Atlântica e tiveram dois filhos, Lucas e Cecília. Um dia, após deitarem-se na cama, Rodolfo resolveu sair para comprar cigarros – não voltou mais.


***


Nos corredores do prédio escutava-se uma violenta discussão, vinha do apartamento 301:
- Foi a bicha do seu pai que fez isso com você! Só podia ser mesmo aquela bicha do seu pai pra fazer isso com meu filho!
- Cala boca, mãe! A porra do meu pai não tem nada haver com isso, e vê se baixa a voz que o prédio todo ta te escutando...
- É pra anunciar pro mundo mesmo! Quero que todos saibam que eu gerei duas bichas aqui dentro dessa casa, você e a puta do seu pai!
Bah! A porta bate e vê-se dois rapazes saindo de mãos dadas do apartamento, quase felizes.


***


Alcides dormiu, sonhou, o alarme tocou, acordou, levantou, se espreguiçou, abriu a janela, o sol o cegou, escovou os dentes, banhou-se, secou-se, vestiu-se, tomou café, rapidamente leu as manchetes do jornal, pôs os sapatos, deu um nó na gravata, endireitou-se uma última vez no espelho, ajeitou o cabelo, pegou a chave, saiu, chamou o elevador, esperou, entrou, desceu, olhou as horas, se atrasou, correu para o carro, ligou o motor, partiu, acenou para o porteiro, pôs o rádio nas notícias, não viu o sinal fechar, furou, bateu, morreu, sorriu.


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André jogava amarelinha com a irmã, Letícia. Embora fosse bem mais nova, a menina dominava o jogo com enorme destreza a ponto de irritar o irmão mais velho que errava cronicamente a última casa. Ela tentou ensinar-lhe a maneira correta de manejar a pedra e como saltar com graça sobre o tabuleiro desenhado à giz, mas o rapaz se negava a receber instruções de uma criança. Mal sabia ele que dentro de dois dias sua irmã seria morta num trágico acidente de trem nas cercanias de Frankfurt, e que o jogo de amarelinha terminara antes mesmo de ter começado.


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Doutor Rockenheim não admitia erros em suas operações. Era necessário concentração e domínio absoluto de si, a ponto de ser quase desumano. Mas era esse o seu método, era como trabalhava e como obteve seu status no meio oftamológico, comentavam os peritos. Seu bisturi nunca errou o alvo, não havia tumor nem glóbulo infectado que não curasse, diziam. Um dia foi chamado para receber a mais alta condecoração da medicina, uma placa dourada com seu nome estampado em alto relevo sobre o título de honorário médico. Mal sabiam eles que o Doutor Rockenheim forjara todos os resultados de exames até então. O sujeito era, na realidade, um homem magro de cara ensebada, arquivista na seção de obituários do jornal O Dia.

***

João Inada

Flagras de um Temporal

(Por Epitácio Laranjeiras)

Ipanema – 2 da tarde – Temporal

- Moço, quanto está o guarda-chuva?
- Ta 10 reais, moça!
- 10 reais? Que roubo! Esse guarda-chuva custa 5 reais no centro!
O ambulante dá de ombros:
- Não sou eu que estou na chuva.
E vira para outros consumidores.
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Botafogo – Ônibus do Metrô – 13:45
- Na minha vida inteira eu só tive 1 guarda-chuva
- Sério?
- Quando eu tinha 5 anos, um do Mickey.
- Nossa! – risos.
- Eu tenho medo de isso me traumatizar. Eu já to com 15 anos. Acho que quando eu crescer vou ter uma casa extra só para guardar guarda-chuva.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Crise de espirros

Seu sono era tão pesado que não chegou a ver o rosto de seu assassino; porém, agora desperto pela dor fatal que sentia, rastejou até o espelho e, vendo seu reflexo, soube quem era o autor das facadas.
A crise de espirros sempre acontecia de madrugada, depois que ele escovava os dentes e jogava uma água no rosto, limpando o sebo que se formava ao longo do dia. Eram dez, vinte espirros seguidos. Um verdadeiro sofrimento. Sempre dissera, de brincadeira, que aquilo ia acabar matando-o. Os alérgicos compreendiam, os perfeitamente saudáveis achavam a afirmativa uma tentativa de dramalhão.
No seu prédio, a janela de todos os banheiros dava para um vão. Era por ali que circulava o ar que supostamente impediria que alguém morresse inalando o gás, que ficava ao lado do chuveiro. Do banheiro, escutavam-se todas as brigas de casais, além dos momentos mais, digamos, animados destes mesmos pares. O vento que circulava por ali e entrava no banheiro desencadeava a crise de espirros. Devia vir cheio de poeira, e a corrente era sempre forte e fria.
O nariz dele estava sempre dolorido por dentro e ferido por fora. Os vizinhos não conseguiam desviar o olhar e acabavam torcendo-lhe o nariz. Não era culpa dele, queria ter a coragem de explicar, ele não era um porco, só tinha rinite alérgica. Espirrar demais machucava o nariz. Porém, nunca se explicara. Afinal, conversas sobre o tempo e o tráfego eram mais condizentes com elevadores.
Na semana anterior, houve uma reunião de condomínio. Como sempre, ele esteve ausente. Ouvira fofocas sobre alguns comentários maliciosos que teriam feito sobre sua crise de espirros. “Ele deve cheirar, é a única explicação”, disse a dona-de-casa do primeiro andar. “Ele espirra tão alto que eu, da minha cama, escuto”, comentou o barrigudo do oitavo. “Também com aquele narigão que ele tem, um espirro só não dá pro gasto”, zombou a executiva do sétimo. “Alguém precisa tomar providências, eu não agüento mais!”, falou a ex-síndica, que morava no quinto e queria o cargo de volta.
A síndica atual tinha se levantado da cama às três da madrugada para fazer xixi. Todo dia acordava às três horas, ia ao banheiro e voltava para a cama. Fazia de tudo para não perder o sono nesse momento. Chegava ao banheiro em meio às trevas. Fazia alguns meses que sofria de insônia, pois era despertada pela crise de espirros do vizinho do sexto andar. Voltava para a cama e rolava de um lado para o outro. Depois da última reunião de condomínio, percebera que não era a única que se incomodava com a crise alérgica. Além disso, a ex-síndica, sua rival, falara em “tomar providências”. Tinha que manter seu posto e manter seu sono. A única providência possível era expulsá-lo do prédio.
Naquela madrugada, fora mais uma vez acordada pela crise do vizinho, e pela milésima vez dormira apenas umas três horas devido à insônia que se abatia sobre ela depois da crise. Com seu cargo ameaçado pela ex-síndica e a sanidade ameaçada pela insônia, muniu-se de uma faca e desceu um lance de escada. Tocou a campainha quando o vizinho espirrante já sonhava. Ele abriu a porta como um sonâmbulo. Ela o matou com dezoito facadas, o número de espirros que ele dera naquela noite. Cinco facadas foram no nariz.
Ao se olhar no espelho naquele derradeiro momento, o alérgico do sexto andar lembrou-se do rosto de sua assassina e pensou: “Mulher de TPM é uma merda!”.

(A louca da casa)

sábado, 29 de novembro de 2008

A frustação

Dona Sofia nunca alcançou o demandado; sem realizações nos quereres de escolha simples ou profissional.

Dona Sofia sofria bruta em seus olhos de insônia. Mas todos paravam pra ouvi-la, com uma sábia eloquência. Ensinava, em oratória, com orgulho, os diversos possíveis caminhos para um ponto de ônibus.

( Flávio Cavaca)