quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Crise de espirros

Seu sono era tão pesado que não chegou a ver o rosto de seu assassino; porém, agora desperto pela dor fatal que sentia, rastejou até o espelho e, vendo seu reflexo, soube quem era o autor das facadas.
A crise de espirros sempre acontecia de madrugada, depois que ele escovava os dentes e jogava uma água no rosto, limpando o sebo que se formava ao longo do dia. Eram dez, vinte espirros seguidos. Um verdadeiro sofrimento. Sempre dissera, de brincadeira, que aquilo ia acabar matando-o. Os alérgicos compreendiam, os perfeitamente saudáveis achavam a afirmativa uma tentativa de dramalhão.
No seu prédio, a janela de todos os banheiros dava para um vão. Era por ali que circulava o ar que supostamente impediria que alguém morresse inalando o gás, que ficava ao lado do chuveiro. Do banheiro, escutavam-se todas as brigas de casais, além dos momentos mais, digamos, animados destes mesmos pares. O vento que circulava por ali e entrava no banheiro desencadeava a crise de espirros. Devia vir cheio de poeira, e a corrente era sempre forte e fria.
O nariz dele estava sempre dolorido por dentro e ferido por fora. Os vizinhos não conseguiam desviar o olhar e acabavam torcendo-lhe o nariz. Não era culpa dele, queria ter a coragem de explicar, ele não era um porco, só tinha rinite alérgica. Espirrar demais machucava o nariz. Porém, nunca se explicara. Afinal, conversas sobre o tempo e o tráfego eram mais condizentes com elevadores.
Na semana anterior, houve uma reunião de condomínio. Como sempre, ele esteve ausente. Ouvira fofocas sobre alguns comentários maliciosos que teriam feito sobre sua crise de espirros. “Ele deve cheirar, é a única explicação”, disse a dona-de-casa do primeiro andar. “Ele espirra tão alto que eu, da minha cama, escuto”, comentou o barrigudo do oitavo. “Também com aquele narigão que ele tem, um espirro só não dá pro gasto”, zombou a executiva do sétimo. “Alguém precisa tomar providências, eu não agüento mais!”, falou a ex-síndica, que morava no quinto e queria o cargo de volta.
A síndica atual tinha se levantado da cama às três da madrugada para fazer xixi. Todo dia acordava às três horas, ia ao banheiro e voltava para a cama. Fazia de tudo para não perder o sono nesse momento. Chegava ao banheiro em meio às trevas. Fazia alguns meses que sofria de insônia, pois era despertada pela crise de espirros do vizinho do sexto andar. Voltava para a cama e rolava de um lado para o outro. Depois da última reunião de condomínio, percebera que não era a única que se incomodava com a crise alérgica. Além disso, a ex-síndica, sua rival, falara em “tomar providências”. Tinha que manter seu posto e manter seu sono. A única providência possível era expulsá-lo do prédio.
Naquela madrugada, fora mais uma vez acordada pela crise do vizinho, e pela milésima vez dormira apenas umas três horas devido à insônia que se abatia sobre ela depois da crise. Com seu cargo ameaçado pela ex-síndica e a sanidade ameaçada pela insônia, muniu-se de uma faca e desceu um lance de escada. Tocou a campainha quando o vizinho espirrante já sonhava. Ele abriu a porta como um sonâmbulo. Ela o matou com dezoito facadas, o número de espirros que ele dera naquela noite. Cinco facadas foram no nariz.
Ao se olhar no espelho naquele derradeiro momento, o alérgico do sexto andar lembrou-se do rosto de sua assassina e pensou: “Mulher de TPM é uma merda!”.

(A louca da casa)

Um comentário:

Iana Villela disse...

A Louca e o humor negro dela, adoro!