terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Contos curtos

Rodolfo casara-se com Maria ainda jovem, mas apaixonado. Mudaram-se para um enorme apartamento na Avenida Atlântica e tiveram dois filhos, Lucas e Cecília. Um dia, após deitarem-se na cama, Rodolfo resolveu sair para comprar cigarros – não voltou mais.


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Nos corredores do prédio escutava-se uma violenta discussão, vinha do apartamento 301:
- Foi a bicha do seu pai que fez isso com você! Só podia ser mesmo aquela bicha do seu pai pra fazer isso com meu filho!
- Cala boca, mãe! A porra do meu pai não tem nada haver com isso, e vê se baixa a voz que o prédio todo ta te escutando...
- É pra anunciar pro mundo mesmo! Quero que todos saibam que eu gerei duas bichas aqui dentro dessa casa, você e a puta do seu pai!
Bah! A porta bate e vê-se dois rapazes saindo de mãos dadas do apartamento, quase felizes.


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Alcides dormiu, sonhou, o alarme tocou, acordou, levantou, se espreguiçou, abriu a janela, o sol o cegou, escovou os dentes, banhou-se, secou-se, vestiu-se, tomou café, rapidamente leu as manchetes do jornal, pôs os sapatos, deu um nó na gravata, endireitou-se uma última vez no espelho, ajeitou o cabelo, pegou a chave, saiu, chamou o elevador, esperou, entrou, desceu, olhou as horas, se atrasou, correu para o carro, ligou o motor, partiu, acenou para o porteiro, pôs o rádio nas notícias, não viu o sinal fechar, furou, bateu, morreu, sorriu.


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André jogava amarelinha com a irmã, Letícia. Embora fosse bem mais nova, a menina dominava o jogo com enorme destreza a ponto de irritar o irmão mais velho que errava cronicamente a última casa. Ela tentou ensinar-lhe a maneira correta de manejar a pedra e como saltar com graça sobre o tabuleiro desenhado à giz, mas o rapaz se negava a receber instruções de uma criança. Mal sabia ele que dentro de dois dias sua irmã seria morta num trágico acidente de trem nas cercanias de Frankfurt, e que o jogo de amarelinha terminara antes mesmo de ter começado.


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Doutor Rockenheim não admitia erros em suas operações. Era necessário concentração e domínio absoluto de si, a ponto de ser quase desumano. Mas era esse o seu método, era como trabalhava e como obteve seu status no meio oftamológico, comentavam os peritos. Seu bisturi nunca errou o alvo, não havia tumor nem glóbulo infectado que não curasse, diziam. Um dia foi chamado para receber a mais alta condecoração da medicina, uma placa dourada com seu nome estampado em alto relevo sobre o título de honorário médico. Mal sabiam eles que o Doutor Rockenheim forjara todos os resultados de exames até então. O sujeito era, na realidade, um homem magro de cara ensebada, arquivista na seção de obituários do jornal O Dia.

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João Inada

2 comentários:

Carleto Gaspar 1797 disse...

O Kanon Contemporâneo da Fragmentação que não permite ao celacanto o previlégio da morte

Kanon disse...

O livro é vermelho no espaço incessante

A mulher que encontra Jacob se chama Matilde